Acabo de ler
Casei com um Comunista, encerrando assim a leitura do que se convencionou chamar de trilogia de Philip Roth sobre a vida na América do pós-guerra. Assim como
Pastoral Americana e
A Marca Humana, estão ali todos os elementos que fazem de Roth esse observador tão especial do que são hoje os E.U.A.. Penso inclusive que classificar essas obras como uma trilogia sobre a vida na América pós-Segunda Guerra é reduzir sua importância. Por mais que as histórias se passem após o período especificado, estão presentes, nos três livros, os elementos formadores da sociedade Americana que se prepara hoje para eleger mais um presidente. Quando leio Roth costumo lembrar do que Will Eisner desenvolveu, na forma de HQs, com sua
Avenida Dropsie, que aliás é outra referência para entendermos o país. Todas as etnias, acontecimentos, misérias e vitórias que fundamentaram o orgulho americano, o preconceito racial e tantos outros aspectos marcantes dessa sociedade estão tanto em Roth quanto em Eisner.
Em
Casei com um Comunista conhecemos Ira Ringold, menino pobre de infância difícil que ao longo da vida foi de trabalhador braçal a ator de radionovelas, passando é claro pela comunismo, elemento que norteia a trama. Sempre dividido entre a causa revolucionária e os prazeres da vida burguesa, Ira vive a vida sempre no limite, violento, resoluto, e exposto a todas as conseqüências dessa forma de conduzir as coisas. Sabemos de sua história pelo irmão Murray Ringold, que conta a Nathan Zuckerman, recorrente narrador dos romances de Roth, as partes da história de Ira que este não conhecia. Zuckerman fora um amigo e discípulo de Ira na iniciação à causa revolucionária e em sua formação geral na passagem da adolescência à idade adulta. No tempo presente do romance, Murray está com 90 anos e Zuckerman com 65. As múltiplas linhas narrativas mostram Ira, Zuckerman e Murray em idades e situações distintas. Roth é brilhante nesse entrelaçamento de tempos narrativos, não havendo risco de incoerência e confusão na cabeça do leitor.
Nathan Zuckerman é sempre descrito como um alter-ego de Philip Roth. No entanto, considero não só ele como todos os personagens de Roth dessa forma. Sua observação sagaz da nação americana se faz através da boca de seus personagens, cada uma deles uma forma do autor enxergar sua matéria na construção dessa ficção que tanto nos ensina sobre a história americana. Vale lembrar aqui trecho do livro em que o professor Murray Ringold cita Shakespeare para recomendar o contrário de algo que o próprio Roth realiza muito bem:
"Você sabe, aprendemos em Shakespeare que ao contarmos uma história não podemos dar vazão a nossos sentimentos imaginativos por nenhum personagem." (p. 364)Os personagens de Philip Roth são sim as peças-chave de suas narrativas. Através de sua participação, mesmo que como coadjuvantes aparentemente inexpressivos, nos grandes eventos históricos do país pós-Segunda Gerra, constrõem-se os significados que o autor quer que conheçamos, da forma como os discursos de cada personagem nos são apresnetados: com preconceitos, heroísmo, fraquezas, anulações e sempre passando a idéia de que a vida é uma batalha diária. Não simplesmente por ser na América, é claro, mas a formação dos E.U.A. da maneira como se deu construiu peculiaridades que refletem significativamente na vida desses cidadãos comuns tão afetados pelo macrocosmo da maior nação do mundo.
Iniciei minhas leituras de Roth com
Pastoral Americana, que narra a história da família Levov. Seymour, atleta popular quando jovem, mantém uma vida digna, com sua fábrica de luvas, provendo à família tudo o que acredita ser o melhor. Sua esposa fora Miss América em 1949, e a união do casal é símbolo de alguns aspectos fundamentais na formação do país: Seyumour é judeu e a esposa católica, fora isso a união do atleta com a miss, em termos de imagem era o que de mais estimulante se poderia almejar na América do pós-guerra. Motivados a criar uma família ancorada nas virtudes das duas crenças, o casal-modelo se vê transtornado quando a filha Merry se envolve em manifestações contra a Guerra do Vietnã, e a família se corrói por dentro daí em diante., por conta de uma sucessão de fatos que só lendo mesmo para compreender sua intensidade. Nesse aspecto, vale lembrar que em
Casei com um Comunista Roth também recorre a uma figura de filha que abala as estruturas familiares. Sylphid, filha de Eve Frame, atriz de cinema com quem Ira Ringold se casa em certa altura da história, é a concretização da frustração, tanto de si mesma quanto da mãe e de todos que com elas convivem. Merry Levov também é um elemento decepcionante. Filhas que viram engodo e chegam a ser indesejadas na busca de seus pais pelo American Way of Life.
Assim como
Pastoral Americana e
Casei com um Comunista,
A Marca Humana também nos é contado por Nathan Zucherman, que se aproxima do protagonista Coleman Silk aos 70 anos de idade e no ápice da derrocada moral deste. Silk fora professor de Letras Clássicas na Faculdade Athena por mais de vinte anos e, por causa de uma piada considerada racista que direcionara a dois alunos que nunca compareciam às suas aulas, é afastado da cadeira na faculdade. Para agravar a situação, há o seu envolvimento com Faunia Farley, faxineira da faculdade, de apenas 35 anos. O macrocosmo da vida real aqui é o escândalo Clinton-Lewinski, que acabara de acontecer nos E.U.A.. Roth escolhe esse momento histórico para criar uma trama em que a todo momento Coleman Silk olha para a Casa Branca para pensar na sua própria tragédia.
Enfim, muita gente começa a ler Philip Roth pelo
Complexo de Portnoy, ou outras obras mais curtas. Os livros da trilogia, cada um com 450 páginas aproximadamente, acabam assustando o leitor iniciante. Pois não se assustem, e leiam os três. A forma como Roth constrói as tramas envolve-nos tão profundamente que a leitura flui perfeitamente, confesso que no meu caso inclusive chego a superar meu tempo de leitura usual quando na companhia de Philip Roth. Um autor especial, com toda certeza. Está demorando para ganhar o Nobel de Literatura.